Textos místicos e outros não tanto

a gaveta está alagada. de poemas.

poemas zangados, em protesto. querem-se mostrar.

uma vida ali fechados. querem sair.

 

vou então abrir-lhes a porta. deixá-los voar.

os seus gritos perturbam-me, desassossegam-me. quero o descanso.

 

toda a vida os calei.

toda a vida fui poema.

poema agora me mostro.

Atlântico, virulento mar,

os teus dias mansos são graças raras,

vento raivoso e ondas brutas o humor de todos os dias.

 

A teus pés ajoelhado

recebo a força e o sal.

A teus pés deitado

bebo uma vida iodada,

encho de areia molhada os bolsos da alma,

e repleto do segredo das conchas e dos peixes

olho seguro o mais distante porvir:

sou mais que tudo e menos que nada ao pé de ti.

O Homem

 

 

Egoísta por natureza da carne,

Amor por natureza do espírito,

Eis o Homem!

 

Navegante de dois mundos,

Perdido nas suas tormentas,

Colisão de ondas de direção oposta,

Que o arremessam daqui para ali,

Folha ao vento,

Por vezes para o fundo, outras para o céu.

 

Pobre Homem,

Como lamento viveres mendigo

sendo senhor e rei.

 

Pobre Homem

Como te admiro e respeito.

O teu projeto é heroico,

Trazer o amor à carne,

A luz... à noite que te habita.

 

Como te admiro e respeito,

Os teus erros são passos no teu caminho,

E o teu caminho é o amor.

senhor

 

 

a minha vida é a minha oferenda

o meu corpo o Teu templo

 

o meu coração é o Teu altar

os meus olhos as Tuas velas

os meus pensamentos as Tuas flores

 

a minha vida é a minha oferenda

o meu corpo o Teu templo

 

a minha vida é o meu poema

e o meu poema é para Ti 

Buda

 

 

Mergulho profundamente em mim

De pés e mãos atados,

Depois de caminhar no bosque gelado.

 

E para lá do barulho encontro quietude,

E para lá da quietude encontro beatitude,

Leite e mel, e leite e mel.

 

Tantos anos para te encontrar, quietude!

E tantos anos para encontrar leite e mel,

Beatitude…

 

No fundo de nós,

Para lá do ruído que agita,

Para lá da paz que nada afeta,

Encontra-se força sem fim,

Amor e luz.

 

Perto da essência,

O buda sorri.

 

Lembra os seus desencontros e os dos homens,

Longe de si e da fonte do mel,

Mas ainda sorri.

 

O que pode fazer,

       Para além de Ser?   

Êxtase

 

 

Se a minha vida explodisse agora,

diria que Sim! Sim! Sim!

Diria que sim quando o amor é tão espesso que se toca e se pode gritar,

quando o instante feliz é risos, música, alegria,

Diónisos! Diónisos! Diónisos!

 

Quero explodir e derramar-me no mundo,

colar em todas as portas fiapos da minha carne,

ser todos, ser um,

juntar-me à existência estreitamente,

fio entrelaçado muito fino.

 

No píncaro do amor e da alegria quero explodir,

desejo a vida infinitamente,

posso dizer e negar que tem sentido,

chama tão alta que tudo aclara.

 

Ó vida… AMO-TE!

 

Sei que me repito...

Mas cinco minutos deste amor valem um ano de agruras,

é mel do mel,

canto do canto,

hora feliz de todas as horas felizes. 

minha alma sabe

de inúmeras fontes as águas

 

meu peito aspira

o ar de muitas serras

o perfume de todos os prados

a maresia de inúmeras vagas

 

no remanso da tarde

semicerro os olhos do sentir,

e no mundo pleno dos marajás mergulho,

em tremeluzentes ouros me sinto,

incrustado de diademas me vejo,

sou alfa e ómega,

encerro tudo e não sou nada 

Compromisso

 

 

Regresso à casa de partida e grito:

- Vitória, vitória!

 

Daqui, saí coberto de sol no zénite,

fui para a rua, dei um peso às costas e sofri,

e agora regresso e canto “Vitória, Vitória!”,

e o sol... o sol, por milagre, vive agora dentro,

a dourar dos olhos a terra em redor.

 

Aqui, na casa de partida,

na hora exaltada concebi o plano, a batalha.

Avancei depois, de peito duro,

trovejou mas não cedi,

um raio fuzilou o chão a meus pés mas prossegui em linha para o fogo inimigo,

tombaram à minha volta companheiros, sangrei do peito,

ouviram-se os meus gritos,

mas guardei comigo a bandeira,

e ninguém me viu renegar.

 

Ferido, vi fugir o inimigo,

e, depois de lavar o sangue e cozer a carne,

subi ao lugar alto de onde os destroços se contemplam,

e vi rica a minha parte do saque:

o Diabo, para já, não temeria,

vira-lhe o rosto, aspirara-lhe o enxofre,

mas persistira, beijara-o na boca, cuspira-lhe na fronte.

 

De regresso à casa de partida, preparo o futuro.

Como antes, serei Dele a esposa fiel,

o amante dedicado, o companheiro caloroso:

até à hora do fim lá estarei, o meu destino será o teu,

para o que der e vier. 

A mente e os dias

 

 

À margem da mente estão os dias,

sublimes e serenos, sem mácula.

À margem do homem pequeno corre a vida,

o que é que ele importa?

 

O pequeno homem é mesquinhez, ridículo, pressa.

Ao lado do estrépito das bombas ainda têm cheiro as flores.

A vida mesquinha sofre e chora,

a outra avança e contínua, é o Olimpo.

 

O homem pequeno é pressa, coisa mesquinha, nada.

À volta passa a vida... Distante. Fonte. Ouro.

O homem pequeno nem aí lava as mãos,

ainda menos dessedenta a voz. 

Queremos um canto limpo, asseado, arrumado...

Queremos sossego, ordem e não ter dores...

Queremos decidir e não errar, escolher e não magoar,

Avançar, simplesmente avançar...

 

Mas, uma e outra vez, uma e outra vez,

vêm as mãos da vida, belas, lindas,

puxar-nos para a planície, puxar-nos para o mar,

onde o céu é imenso, o destino tudo, o ar puro,

e onde se tem de atravessar, molhar os pés,

e saltar, queimar, matar...

 

Queremos um canto limpo, arranjado, asseado...

Mas puxam-nos, tiram-nos de casa, querem-nos lá,

e temos de ir, ir, ir...

Se eu te amar para lá dos limites,

- Deixa por favor!

Se eu te amar de manhã e à noite, verão e inverno,

- Deixa por favor!

Se eu te amar quando és linda e quando és feia, quando estás limpa e quando estás suja,

- Deixa por favor!

Se eu te amar ao sol, se eu te amar à chuva, se eu te amar no calor, se eu te amar no frio, se eu te amar no bem, se eu te amar no mal, se eu te amar na saúde, se eu te amar na doença,

- Deixa por favor!

 

Deixa-me amar-te Vida, Vida infinita, pulsação, voo das árvores, chão dos pássaros, deixa-me amar-te.

Deixa-me amar-te sem limites,

Onda que invade a praia, tudo afoga e traz de volta ao Mar.

 

Deixa-me amar-te Vida,

sem deixar nada para trás,

dá-me olhos brancos,

dá-me olhos sem palavras,

dá-me o coração aberto,

só amor e amor por Ti.

Gostava de escrever música em vez de poemas,

compor sonatas encantadas,

por isso desculpem as frases a mais:

Esqueço o que faço e devaneio,

cumpro, tão só, os passos do ritmo,

os versos saltam-me da música,

não me leiam por favor, cantem ou declamem,

tenho um batuque avariado que não sei desligar,

que inunda as letras com compassos

e que impede outro modo de ser.

 

Desejaria planear e ter versos bem pensados,

mas assim matava a musa,

e não posso ir aos versos sem ela.

“Ou os dois ou ninguém” – diz-me,

e eu digo que sim, “O que posso fazer?”,

mas contente claro, muito contente:

Amo cantar, amo dançar,

no regaço dos sons há uma terra prometida, leite e mel,

recanto da vida, recarga da vida, fonte da vida. 

A besta

 

 

A besta de dentro de nós... permanece.

Guarda-se de atalaia, espera o salto,

irrompe possante e de improviso a arrasar os campos,

a demolir altares e sacrários,

a queimar as flores com que encantámos o nosso jardim.

 

Guarda-se nos montes, longe das vistas,

erra nos montados, anda mais de noite,

mas irrompe em dilúvio e maremoto,

a queimar os frutos que plantámos, cuidámos e escondemos da geada.

 

Muitas caçadas fizemos, pensámos tê-la açoitado de vez,

esconjurado de casa danação tamanha,

encerrado nos claustros e celas distantes...

Mas heis que surge em torrente e estertor,

a deixar-nos em choro e unhas na cara,

a deixar-nos penitentes e de chibata no dorso,

com tão grande remorso que é ter a fera ainda dentro de nós.

 

Um dia aceitaremos.

Um dia cresceremos. 

Meu amor...

 

Ficamos nesta terra do nada,

com amor, mas tão pouca esperança.

 

Damos um passo e caímos,

batidos pelo lixo do nosso amor.

 

Levanta-te meu amor, levanta-te,

há caminho, eu vejo.

 

Vem escrever com o teu sangue a nossa história,

eu ponho lá o meu também.

 

Procuremos o riacho de águas frescas,

lavemos as feridas.

 

Água abaixo, em poeira de ouro a nossa dor se transforma,

a dourar as pedras do caminho.

 

Levanta-te meu amor, levanta-te. 

o santo vê...

 

 

Para o santo da alma o mundo está às avessas,

sobem ao púlpito os padres errados,

são tortos os endireitas,

bate-se palmas em vez de apupar.

 

O mundo é estranho para o santo da alma,

e grande é a tentação de se desprezar.

No baixo céu não brilham as constelações, ainda menos as estrelas,

e não se dança o seu musicar.

 

O santo vê o mundo de pernas para o ar,

um planeta do avesso e invertido.

Inventou-se um bem que é mau,

deuses baratos com enxofre debaixo do Chanel.

 

O santo da alma vê grã-cruzes e condecorações,

olha para palmas e foguetes,

e sente-se à parte.

Procura a sua casa longe,

onde se ama a água que canta,

e não se toma um vinho qualquer.

 

O santo vê grandes ovações, banhos de multidão,

vê as invejas do povo, a vontade de parecer, de aparecer,

e procura onde vomitar,

sabe-lhe a fel.

 

Olha à volta e não logo descobre um irmão seu,

só gente gorda a querer enfardar.

 

O santo da alma estranha o mundo.

Vê o ímpio no altar, o sacrário profano.

 

Vê-nos longe da vida grande que ele ama.

VÊ!

Na manhã de arco-íris glorioso,

expando os sentidos,

amo tanto que choro,

adoro as árvores e tudo,

rejubilo.

 

Manhã fria de Outono,

sol e água nas árvores felizes,

cores e cores nos plátanos luminosos,

a vida vibra debaixo do frio,

pede aos amantes a cama e o poema ao poeta.

 

Escrevo feliz.

Amo tanto a vida que a quero sem fim,

e chamo para mim dias assim.

Mar

 

 

Na manhã quente de outubro

vou até às ondas do mar antigo.

E lavo-me da minha história e volto a Ser

pés, respiração e olhos limpos.

 

Volto a Ser, sem antes, sem depois, só agora.

 

Celebro o instante, desapareço e tudo existe, fulgurante.

 

Lava-me sempre, ó mar!

Livra-me do homem pequeno

que corre daqui para ali, dali para aqui,

e chega a lado nenhum.

marioresende@almasoma.pt